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Especial: TransPassando - o projeto que nasceu "movido à raiva" e virou família



Como quem canta os versos de Belchior, “ano passado eu morri mas esse ano eu não morro”, Danyela Souza, 31, revive o dia em que perdeu o domingo de provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2016. “O ônibus ficou engarrafado na feira da Parangaba e já passava da hora quando chegou no Terminal. Eu só chorei e voltei pra casa”, relembra. Em 2017, ela ousou sonhar novamente em cursar Serviço Social ou Letras em uma instituição de ensino superior. Danyela é uma mulher transgênero (não se identifica com o gênero a ela atribuído no nascimento), e atrever-se, então, é tarefa que cumpre bem.


Com o objetivo de ajudar mais pessoas como Danyela a chegar à universidade e ao mercado formal de trabalho, nasceu, em 2015, o TransPassando, programa de extensão da Universidade Estadual do Ceará (Uece). “Ouvia-se muito um discurso higienista contra os estudantes da Filosofia. ‘Ah, bando de maconheiro, vagabundo, etc.’. Um dia ouvi isso de três professoras de Letras e foi assim que surgiu a ideia: ‘Estão achando ruim? Pois eu vou entupir esse Centro de Humanidades de travesti’. O TransPassando começou movido à raiva”, explica, entre orgulhosos sorrisos, a idealizadora Ilana Viana do Amaral, professora do Curso de Filosofia da Uece.



A iniciativa


“(O programa) expandiu muito minha área de conhecimento. Não é só voltado para o vestibular. Tem também direitos e deveres que a gente descobre aqui”, conta Danyela. É que além dos cursos de pré-vestibular e de capacitação profissional, os alunos e alunas do TransPassando contam também com grupos de apoio terapêutico, aulas de educação física, idiomas e defesa pessoal, palestras e rodas de conversa. Tudo isso orquestrado de forma coletiva e auto-organizada. “A gata vem pra cá leiga e sai empoderada”, afirma Manuela Alves, 19, que também é aluna do programa.


No país que mais assassina pessoas trans no mundo (de acordo com levantamento divulgado pela Rede Trans Brasil), a iniciativa é a primeira a desenvolver um projeto de educação dentro de uma universidade voltado a essa população, e seguindo uma metodologia colaborativa desde o princípio. Todas as decisões sobre o futuro do TransPassando são tomadas de forma coletiva, em reuniões abertas à participação de todos os envolvidos, inclusive os próprios alunos e alunas. Horizontalidade é a palavra de ordem do programa, que busca desenvolver um ambiente livre de hierarquias e baseado na voluntariedade.


Professores, colaboradores e organizadores do projeto não recebem qualquer tipo de retorno financeiro por sua atuação. Para o professor Pablo Tahim, que ministra aulas de Sociologia no projeto, o TransPassando lhe propicia o “preenchimento de uma lacuna pessoal e social como educador”. “Para mim, possibilitar a essas pessoas novas oportunidades é o cumprimento de um papel social enquanto ser atuante através da educação. Além disso, é uma grande relação de aprendizado mútuo. Eu também aprendo com eles e elas e isso acaba se refletindo na minha atuação no ensino básico”, destaca.



Além da sala de aula


O TransPassando também realiza atividades fora do ambiente universitário. Alunos e alunas participam de eventos e rodas de conversas levando informações a outros espaços além do acadêmico e promovendo a conscientização e o combate à transfobia. Para Syssa Ádley Monteiro, membro da equipe de organização do TransPassando, o diálogo com a sociedade é fundamental para esse processo de conscientização. “É justamente poder mostrar para população, para a sociedade, que nós existimos e que nós também somos portadores de direitos. (Por meios dessas iniciativas) nós podemos trazer informações sobre a nossa realidade e promover a conscientização”, declara Syssa, que está envolvida com o projeto desde a sua criação.


Syssa também diz acreditar que um dos principais papéis do programa é possibilitar que as pessoas transexuais e travestis possam compreender a importância da autonomia e passem a ser “sujeitas das próprias ações”. “Algo que é bem marcante e característico disso é que quando os alunos e alunas passam a frequentar o TransPassando, eles deixam de ser apenas objeto de pesquisas da sociedade, passando a promover suas próprias (pesquisas), desenvolvendo produções culturais, artísticas e acadêmicas e apresentando em eventos nacionais. Isso mostra, de forma prática, que nós podemos ocupar diversos outros espaços na posição de sujeitos”, complementa.


No país que mais assassina pessoas trans no mundo, a iniciativa é a primeira a desenvolver um projeto de educação dentro de uma universidade voltado a essa população. (Foto: Aléxia Vieira)


Como uma família


Manuela Alves conheceu a iniciativa por meio de Danyela Souza. Antes mesmo de concluir o ensino médio, passou a participar de atividades do TransPassando. Também pretende cursar Serviço Social, mas tem como segunda opção a radiologia: “Nada a ver ser da saúde ou da assistência social, né?”. Manuela vê nas amigas do projeto mais uma parte da família. “A gente ajuda uma a outra. Para mim é Deus no céu e Transpassando na terra”, brinca.


O desejo de estarem juntas se faz ainda mais presente quando as duas lembram que nem todas as colegas enxergam oportunidades nos mesmos locais. “Do meu tempo, poucas trans continuam estudando. Todo o resto se prostitui e é assim por causa da sociedade”, delimita. Ela relata também que já teve quem tentasse trocar de ofício. “Tem uma amiga que veio, começou a se interessar mas não terminou. O telefone não parava de tocar, porque a hora dela era a hora do cliente”, complementa Manuela.


“E se não for assim, como é que elas vão se alimentar? Como é que elas vão pagar os R$50 todo dia para a cafetina?”, desabafa a jovem. Assim como a colega de Manuela, 90% da população de travestis e transexuais do Brasil são obrigadas a entrar na prostituição para se sustentar, de acordo com levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra). “Eu atribuo isso ao meio escolar. Lá era onde deveríamos ter apoio, mas ele não existe. A maioria das trans para na sétima, oitava série e vão para a rua”, confirma. Ainda de acordo com a Antra, 82% da população transexual e travesti do Brasil não concluiu sequer o ensino básico.


Sonhando com o futuro, Manuela anseia retornar universitária e integrar a organização do cursinho que, muitas vezes, a auxiliou em momentos difíceis. Ao fim do último ano na Escola Prof. José Aurélio Câmara, a jovem foi indicada pelo restante da sala para desfilar como representante feminina de uma feira cultural. A direção negou. “Foi um constrangimento daqueles, mas o TransPassando me ajudou, me indicou uma advogada. Deu tudo certo e eu desfilei.”


Segundo a pesquisa “Juventudes na Escola, Sentidos e Buscas: Por que frequentam?”, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), 2,5% dos jovens entre 15 a 29 anos não querem ter uma pessoa transexual na classe. “Tive que ouvir gente me chamando de homem, inclusive os próprios professores. Foi horrível. Mas tinham pessoas (torcendo) por mim. Não era a maioria, mas tinha. Eu cheguei lá na frente, toda fina, de salto. Foi ótimo”, rememora.



A boa filha à casa torna


Shábilla Moura, 31, foi aluna do TransPassando em sua trajetória rumo ao ensino superior. Ela descobriu o projeto ainda durante o processo de criação, por intermédio de Syssa. Foi para a reunião, gostou do que vivenciou e passou a frequentar as aulas do cursinho. Foi aprovada no vestibular e hoje cursa Gestão Tecnológica da Qualidade na Universidade Federal do Ceará (UFC). Para o amanhã, pretende entrar em Direito na mesma instituição. Shábilla não deixou de frequentar o TransPassando. Entre as outras alunas e alunos, é uma figura de admiração.


“A importância do TransPassando para mim foi além do curso preparatório para o vestibular. Foi lá onde eu me empoderei, tomei uma consciência mais profunda de quem eu sou e de quais são os meus direitos e passei a fazer parte de uma militância. O projeto transformou não só a minha vida, com relação à minha transexualidade e a ter passado no vestibular, mas também a (vida) das pessoas ao meu redor”, relata Shábilla. “Eu parei para observar e vi que a melhor forma de ajudar a comunidade T (transexuais, travestis e transgêneros), na qual estou inserida, é trabalhar na área jurídica. Então eu vou voltar a estudar para fazer Direito”, conta.


Outras ex-alunas do projeto que hoje ocupam uma vaga em universidades, assim como Shábilla, alertam as que ainda temem em relação ao ambiente. “As meninas sempre nos relatam as conquistas delas, como o uso do nome social. Sabemos que vai ser difícil, mas já estamos indo polidas”, garante Danyela. “A gente já está preparada para as críticas. Doer, dói. Mas se a gente for deixar de viver a vida por esses constrangimentos a gente não sai nem de casa. É uma força de vontade tão grande de ser uma trans formada que a gente deixa isso passar”, finaliza Manuela.



Serviço

TransPassando - Av. Luciano Carneiro, 345 - Campus de Fátima (UECE), Fortaleza - CE, CEP: 60410-690. Funcionamento: Segunda à sexta-feira (13:30h às 18h).

O projeto aceita doações financeiras e de materiais escolares.

“TransPassando - UECE” é o nome do grupo no Facebook.




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